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segunda-feira, 11 de junho de 2012

Liberais, libertários e comunitários – todos democratas.


Liberais, libertários e comunitários – todos democratas.
Paulo Ghiraldelli Júnior
http://ghiraldelli.pro.br/2011/08/30/liberais-libertarios-e-comunitarios-todos-democratas/ May 31, 2012

A política brasileira dos últimos anos trouxe má fama ao termo “liberal”, se é que já não bastasse para tal o nosso passado mais distante. O Partido da Frente Liberal (PFL) e o Partido Liberal (PL) que, aliás, já nem mais existem, nunca se pareceram com qualquer coisa que se pudesse imaginar como liberal em um manual de ciência política. Somado a efeitos das mazelas educacionais já tradicionais no Brasil, e também a certo antiamericanismo atávico que perpassa nossa academia, essa má fama da palavra “liberal” ajudou a empurrar nossos estudantes (e infelizmente também alguns professores) para uma quase impossibilidade de compreensão intelectual do liberalismo. No entanto, não há estupidez que se possa vangloriar como sólida por toda a vida.
Quando olhamos antes a filosofia política anglo-americana que a européia-continental, o termo “liberal” não tem como ser descartado. Nessa tradição da literatura em filosofia política, sempre podemos distinguir duas grandes facções, os liberais clássicos e os liberais modernos. John Locke foi o pensador liberal clássico que ensinou a doutrina política da tolerância religiosa e das leis que deveriam proteger a liberdade individual e as propriedades do indivíduo, inclusive e principalmente o pensamento e a vida, também tomados como propriedades. Mas, ao final do século XIX e início do século XX a América já havia produzido os liberais modernos. John Dewey foi um dos grandes entre estes tipos – inclusive como o pai intelectual do New Deal do Presidente Roosevelt. Nos anos setenta, então, John Rawls protagonizou-se como o revigorador dessa linha de pensamento.
Essa corrente dos modernos, a de Rawls, ficou conhecida como a dos liberais igualitários, e fazendo-lhe oposição fixaram-se duas escolas de liberais que, nos Estados Unidos, foram chamadas de libertárias, enquanto que no resto do mundo, talvez de modo errôneo, seus membros tenham ficado conhecidos como “neoliberais”. Esses libertários se dividiram em dois grandes grupos. E ambos tiveram como alvo o trabalho de Rawls.
A ideia básica de Rawls é que o liberalismo como doutrina política funciona segundo uma forma de justiça. No caso, a melhor justiça para tal seria aquela que viesse da teoria criada por ele próprio e batizada como “teoria da justiça como equidade”. Tal modo de vida liberal seria regrado pela ideia da garantia de liberdades básicas, jamais cerceadas senão por razões de outras liberdades, e de modo a favorecer a igualdade de oportunidades, empregos e posições de poder, sendo que toda diferença que viesse a se ampliar na sociedade só se justificaria se efetuada no sentido de beneficiar os menos favorecidos pela sorte. Em outras palavras: o liberalismo promove a liberdade e a igualdade, e qualquer desigualdade surgida deve ser em função dos benefícios dos que estão em pior situação.
É claro que essa ideia de liberalismo de Rawls, baseado na justiça como equidade, acaba por reclamar do Estado uma certa participação mais positiva diante daquela invocada por Locke. Os libertários, obviamente, não poderiam mesmo concordar com isso. Entre os libertários, pensadores como Friedrich Hayek jamais se interessaram por princípios filosófico-morais. Defenderam a ideia de um estado mínimo por razões de eficiência deste em relação ao bem comum. Mas, filósofos como Robert Nozick fixaram-se em princípios. Sua ideia de que Rawls estava errado se baseava em uma questão doutrinária: são direitos naturais do homem poder ficar com o que se consegue ficar por meios legais e legítimos, seja por trabalho, compra e venda, herança ou troca. Assim, qualquer plano redistributivista que a Justiça como Equidade pudesse trouxer à baila, seria por si só uma injustiça.
Esse embate expressou um lado dos confrontos na filosofia política de linhagem anglo-americana. O outro lado ficou por conta das críticas dos comunitaristas aos liberais.
Quando olhamos o panorama geral, podemos ver que a crítica comunitarista ao liberalismo tem suas raízes nas observações de F. W. Hegel contra Immanuel Kant e de Karl Marx contra o liberalismo em geral. Os comunitaristas sabem disso. Todavia, eles nunca se filiaram claramente a qualquer posição que não fosse a democrática. Por isso mesmo, nunca puderam ser colocados como críticos do liberalismo enquanto advogados de qualquer arranhão no tipo de democracia que vingou na América. Assim, pensadores como Michael Walzer, Michael Sandel, Charles Taylor e outros desenvolveram críticas ao liberalismo não necessariamente quanto ao tamanho do Estado. Eles se concentram em aspectos da teoria de Rawls, reclamando do seu caráter abstrato. Essa crítica tem seus percursos e peculiaridades. Mas ela, ao menos em princípio, não é nada fraca ou pouco ambiciosa, pois ela quer atingir a ideia central da doutrina liberal rawlsiana.
Eis o centro do liberalismo de Rawls: trata-se de uma doutrina antes deontológica que teleológica. Em outras palavras: Rawls advoga uma doutrina que visa a constituição prioritariamente de princípios básicos de justiça, sem qualquer ocupação moral que, enfim, queira fixar o que é o bem. Uma doutrina que se preocupa com o bem, e que busca fazer a sociedade se regrar por essa finalidade, é chamada de teleológica. As doutrinas teleológicas são postas de lado por Rawls, em especial uma que ocupa um bom espaço no senso comum inglês e americano: o utilitarismo.
Os utilitaristas pregam que uma doutrina de organização social deve visar antes o bem que a justiça. A ideia geral é a de se colocar a felicidade como o bem. Assim, a felicidade do maior número de pessoas é o que há de mais útil. Sabe-se que algum tipo de socialismo inglês se originou por essa via. Mas Rawls prioriza a justiça e, particularmente, a sua teoria da justiça como equidade. Para ele, o importante é deixar o bem por conta de indivíduos e grupos, como alguma coisa que o pluralismo da sociedade moderna vai manter sempre em discussão. Agora, a justiça, esta sim é de ordem da política. Ela é o liberalismo como garantia da liberdade, que já se explicita na liberdade a respeito de cada um poder defender a sua ideia de como conduzir a vida, a sua perspectiva filosófica e religiosa. Mas ela é, também, o liberalismo como o esforço de proteção dos princípios igualitários.
Ora, os comunitaristas duvidam que essa divisão entre doutrinas deontológicas e teleológicas possa se fazer de modo nítido. Eles acham que nenhuma concepção de justiça, muito mesmo a de Rawls, é neutra quanto a pressupostos morais que, enfim, derivariam da adoção de teorias filosóficas e arranjos religiosos. Pois, para eles, a justiça emerge a partir da moral, e esta vem da ligação das pessoas com as suas tradições, com a sua comunidade e, assim, com as filosofias vigentes e, principalmente, com as religiões do seu lugar de origem. Desfazer-se disso é esvaziar as pessoas. Ora, como que pessoas vazias saberão, enfim, o que é mesmo justo ou não justo?
Os comunitaristas negam que exista princípios universais racionais de moral e justiça. Acreditam que o liberalismo, ao insistir na existência de tais princípios, antes prejudica que ajuda o próprio liberalismo. Enfraquece suas pernas ao fazer um discurso vazio e, assim, abre a porta para fundamentalismos.
Assim, levando a sério a crítica comunitarista, pode-se imaginar que a promissora neutralidade do liberalismo cai por terra. É aí que é interessante chamar a presença de Richard Rorty. Talvez ele tenha sido um dos poucos filósofos da América a perceber que a disputa entre liberais e comunitários não deveria ser levada adiante.
Rorty prefere tomar Rawls como querendo estabelecer não um campo neutro, e muito menos abstrato. Para ele, o que Rawls faz não é kantiano, é historicista. Ralws, para Rorty, não é outro senão aquele que adota claramente a posição do americano que, enfim, tem se dado bem com a divisão entre o que é da ordem da política e, portanto, da justiça, e o que é da ordem da moral, isto é, o que deriva de concepções filosóficas abrangentes e concepções religiosas. Assim, não é o caso de se querer um “eu” abstrato como legislador, mas, ao contrário, cabe desejar exatamente o que os comunitaristas dizem que querem, só que com um detalhe: quem é escolhido como legislador, uma vez vindo da comunidade americana, trará consigo, como sendo básico e comum, a aceitação dos princípios liberais de que não há razão para jogar as questões que envolvem disputa filosófica ou religiosa para o campo da política, ao menos não no sentido de querer com isso arrebentar a estrutura básica da justiça, ou seja, o próprio liberalismo.
O que ocorre então é que o pressuposto de abstração que os comunitaristas denunciam pode ser verdadeiro, mas isso não muda nada em Rawls. Pois, no limite, ele não está mesmo utilizando desse pressuposto. Ele pode ficar com o legislador que emerge prenhe de saberes e valores comunitários. Mas esse legislador, por vir de um meio historicamente liberal democrático, vai agir como quem quer manter o que seria a neutralidade da política diante da filosofia e da religião.
Por isso, Rorty disse que John Dewey havia sido um pensador comunitarista e, ao mesmo tempo, o mais liberal dos democratas americanos. Sandel teve conhecimento do artigo de Rorty em que este leu Rawls por essa nova via e, por isso mesmo, reviu suas posições. No entanto, por outras razões, ele ainda continua atualmente imaginando poder atacar Rawls. Mas isso já é assunto para um outro texto.

Rawls, um tipo de liberal ironista?


Rawls, um tipo de liberal ironista?
Paulo Ghiraldelli Júnior
http://ghiraldelli.pro.br/2011/09/07/raw ls-um-tipo-de-liberal-ironista/ May 31, 2012.

Dois pioneiros americanos discutiam asperamente. A pendenga dos colonizadores era sobre maçãs. A macieira havia nascido no terreno do primeiro, mas seus galhos mais produtivos tinham avançado por cima da cerca, parando por sobre o terreno do segundo. Uma chuva rápida deitou as maçãs todas no terreno do segundo. Qual seria a medida justa para a posse das maçãs? Não conseguindo chegar a um acordo, eles buscaram ajuda na cidade, com um sábio do local. O sábio, então eleito árbitro, examinou o caso e lhes perguntou se queriam que a situação fosse resolvida “pela lei de Deus” ou pela “lei dos homens”. Puritanos até o último fio do cabelo, eles responderam quase que simultaneamente, bastante afirmativos: “pela lei de Deus, é claro!” Então, o sábio pediu a eles uma moeda e, atendido prontamente, examinou o dinheiro para certificar a autenticidade, se de fato era nítido o lado “cara” e o lado “coroa”. Feito isso, então, num impulso do polegar aliado ao indicador lançou-a ao ar, esperando-a cair na palma de uma mão e, num gesto rápido, expôs uma das faces da moeda no dorso da outra mão. Em seguida, deu todas as maçãs a um dos homens.
É difícil encontrar alguém que, ao escutar essa história, não reclame. Como os dois litigantes, a maior parte dos ouvintes, inicialmente, também prefere a “lei de Deus”. Mas os ouvintes fazem isso apenas porque escutam somente a palavra “Deus”, e daí já julgam que o que segue deverá ser algo necessariamente bom. Depois, quando a lei da moeda lançada é aplicada, voltam a se lembrar da razão dos homens terem inventado suas próprias leis. Os homens perceberam que o melhor seria tentar crescentemente anular o modo aleatório das coisas ocorrerem no mundo. A loteria da natureza ou da vida social, ou seja, o que ocorre pela sorte – a “lei de Deus” – parece à nossa intuição moderna algo pouco justo. Entendemos então a razão de termos nos metido nesses casos, criando também “a lei dos homens”, ou melhor, a justiça. Modernamente, estamos já quase acostumados a tentar minorar as desvantagens advindas do que não podemos controlar e decidir, de modo a garantir liberdade e igualdade para todos – principalmente igualdade de oportunidades. Damos o nome a isso de requisito básico da “justiça social”.
Na história da filosofia a ideia atual de “justiça social” tem sua ancestral na busca da cidade justa. Assim, no ponto de partida está a Grécia antiga e no ponto de chegada a América.
O filósofo grego Platão (428-347 a.C.) e o filósofo estadunidense John Rawls (1921-2002) criaram teorias da sociedade justa. São teorias antes normativas que descritivas. Não são teorias sobre o que é e, sim, teorias tipicamente filosóficas, sobre o deve ser. Mas não são narrativas utópicas, como as que vingaram no Renascimento, que mostravam cidades ideais que jamais poderiam se efetivar; são teorias que podem ser levadas adiante no sentido de guiar a construção de uma sociedade, ainda que se saiba que essa sociedade talvez não venha a funcionar à risca, como a teoria gostaria.
Platão imaginou a cidade justa em associação a uma profunda metafísica, isto é, uma teoria não empírica da natureza humana. Aliás, pode-se dizer que ele criou o pensamento filosófico de tipo metafísico exatamente no contexto da sua reflexão sobre a justiça. Sua descrição da cidade justa, como se apresenta em A República, harmoniza em um só conjunto uma teoria da alma humana e uma hierarquia social. A alma humana é divida em três partes e a cidade, correspondentemente, apresenta três grandes grupos sociais fixos. A psicologia platônica indica a “alma superior” como sendo o intelecto, responsável pela capacidade racional, isto é, pelos cálculos, formulações de juízos e decisões; a “alma espiritual” abriga a disposição, o ímpeto e a coragem; finalmente, a “alma inferior” responde pelas necessidades ligadas a apetites e desejos. Essa psicologia tem como correspondente, no plano social, a hierarquia da população da cidade. Há, então, o grupo de sábios anciãos que funcionam como comandantes da cidade, o de soldados responsáveis corajosamente pela defesa externa e pela paz interna e, por fim, o de trabalhadores manuais, os artesãos e outros. A cidade justa é justa à medida que nada possa quebrar essa ordem hierárquica que lhe permite o seu ótimo funcionamento. Para tal, do grupo dos anciãos é escolhido o rei que, como todos os outros anciãos, é um filósofo. Sendo filósofo, está em contato com a verdade que, admitida como única, também é acessada pelos outros sábios, o que garante o consenso entre o grupo de governo. Desse modo, não há disputa entre as elites, ficando afastada a possibilidade de formação de partidos, cuja consequência, como temia Platão, seria a divisão da guarda e, enfim, do povo, aglutinados em torno deste ou aquele membro da elite. Uma divisão desse tipo, em partidos, acabaria conduzindo a cidade às terríveis disputas internas dilacerantes – bem conhecidas e vividas por Platão – e até mesmo à guerra civil, o que certamente seria o ápice de uma situação de injustiça.
Diferentemente de Platão, em nossos tempos, a proposta de Rawls é considerar a cidade justa como uma cidade democrática, ou melhor, como uma sociedade liberal democrática. Platão não foi um democrata, obviamente. Ele está mais distante de nós, ainda, não só pela sua postura de resistência à democracia, mas também pelo seu desconhecimento da invenção tipicamente moderna chamada liberalismo, uma doutrina que, principalmente quanto à política, reformulou a noção de democracia. No entanto, há algo de Platão em Rawls.
Como Platão, Rawls também vê a justiça como uma virtude. Mas, em que sentido? Platão jamais deixou de lado as quatro virtudes cardeais do mundo antigo grego: temperança, coragem, sabedoria e justiça. As três primeiras deveriam se realizar nos indivíduos enquanto que a última, a justiça, seria uma virtude própria também da cidade. A justiça seria uma virtude coletiva par excellence. Isto é, Platão assumiu a palavra “virtude” em um seu sentido específico, como quando a utilizamos para responder a pergunta “em virtude do que se é o que é isto?”. Ele sabia-se correto ao dizer que a cidade era uma cidade, uma boa cidade, uma coletividade funcional e harmônica se pudesse dizer, por exemplo, coisas como “Esparta é uma cidade (ou boa cidade) em virtude de sua justiça”. Nesse sentido, Rawls não deixa de ser platônico. Uma coletividade é uma sociedade organizada em virtude de sua justiça.
Todavia, quanto a outro aspecto, Rawls não é nada platônico. Enquanto que Platão necessitou de uma metafísica (a até inventou-a por conta disso!) para poder instalar a justiça como legítima, Rawls mostra-se um pensador completamente de seu tempo – o nosso tempo –, criando uma teoria normativa sem metafísica. Ele elabora a noção de “razão pública” como neutra em relação a qualquer “doutrina abrangente” – religiosa ou filosófica (isto é, metafísica). Isto é, Rawls não tem – e diz não precisar – uma teoria filosófica da natureza humana e não apela (principalmente nos seus últimos trabalhos) para qualquer pretensão de universalidade quanto ao que afirma sobre sua teoria – a “teoria da justiça como equidade”.
Talvez se possa dizer, para clarear o leitor já afinado com o meu próprio vocabulário, que Rawls é um tipo de “liberal ironista”, no sentido em que Richard Rorty (1931-2007) criou essa expressão: ele, Rawls, é francamente um liberal à medida que quer uma sociedade cuja política não seja aquela que permite que os mais humildes venham a ser humilhados pelos mais poderosos, mas, ao mesmo tempo, ele não tem nenhum fundamento filosófico com o qual possa condenar aqueles que, em uma sociedade liberal democrática, atuem no sentido dessa má política. A diferença para com Rorty, o que não implica em divergência, é que este vê a justiça como uma ampliação dos círculos de lealdade a que pertencemos na nossa vida – a família, o clã, a cidade, antes que a nação ou a humanidade –, independentemente de tipos de sociedade, enquanto que Rawls se interessa pela justiça como o que pode regrar comportamentos políticos em sociedades do tipo liberal democrática.
No interior da ideia de fornecer uma teoria normativa, ele pressupõe que pode exibir algumas regras para as pessoas avaliarem e, então, escolherem as melhores para o conjunto de sua sociedade. Essas pessoas, ele a denomina de “razoáveis”, os princípios que acolhem são as de sua “teoria da justiça como equidade”.
É notório que cada uma dessas “pessoas razoáveis” de Rawls, como ele as define, deve se parecer bastante com alguém capaz de incorporar a figura do sujeito da filosofia moderna, uma construção certamente metafísica ou próxima desta. Ou seja, seguindo vários modernos (Kant à frente), poderíamos dizer que o ideal seria que todo indivíduo pudesse ser autônomo, isto é, atuar como um sujeito filosófico, aquele que é “consciente dos seus pensamentos e responsável pelos seus atos”. Todavia, Rawls não toma essa formulação em seu sentido metafísico ou filiado a uma grande metanarrativa, mas agarra-a em um sentido metafisicamente desinflacionado. Toma-a naquelas características que podemos mais ou menos encontrar no homem empírico comum, informado, de nossas democracias contemporâneas, herdeiras do ideário e das instituições de divulgação educacional e cultural do Iluminismo. Este não seria senão aquele homem que, vivendo em uma cultura regularmente democrática, ocidental, é abordado pela lei como alguém capaz de entender e avaliar regras não só entre parceiros, mas entre ele e as instituições e, também, assumir compromissos privados e públicos, além de ser alguém que dá valor à liberdade individual de consciência, expressão e locomoção, à igualdade perante a lei e à igualdade de oportunidades, além da tolerância, é claro. Pessoas assim, razoáveis, são convocadas por Rawls para avaliar uma doutrina da cidade justa, dizendo a ela “sim” ou “não”.
Essa doutrina, segundo Rawls, deve ser escolhida por essas pessoas que, por sua vez, estariam na situação que ele denomina de “posição original”, algo equivalente – mas não igual – ao que os primeiros teóricos modernos (os jusnaturalistas) chamaram de posição na situação pré-contratual.
Na terminologia de Rawls, trata-se da “posição original”. Assim, elas estariam como quem veste um “véu de ignorância”. Isto é, não teriam nenhum conhecimento (classe, orientação sexual, renda, religião etc.) que pudesse permitir qualquer certificação sobre o lugar que ocupariam na sociedade a ser regrada. Desconhecendo qual lugar ocupariam na sociedade, elas agiriam como legisladoras prudentes, muito provavelmente realizando uma “escolha racional” dos princípios que deveriam comandar essa sociedade na qual iriam viver. A aposta de Rawls é que elas normatizariam a sociedade de uma forma que mesmo o lugar dos menos favorecidos, não seria um lugar esquecido, pois, caso caíssem nesses lugares ao passarem a viver nessa sociedade, ainda assim viveriam em uma situação cujas dificuldades estariam tendo atenção social. Essa sociedade seria, segundo a aposta de Rawls, uma que pudesse garantir liberdades básicas de modo igual para todos, posições e empregos abertos a todos sob condições justas de igualdade de oportunidades, sendo que as desigualdades sociais e econômicas advindas dessa diferenciação seriam consideradas válidas somente se viessem a beneficiar coletivamente os menos favorecidos.
A ideia de Rawls é a de que um pequeno conjunto de regras (na verdade, dois princípios) é perfeitamente condizente com o liberalismo, que pode então ser rebatizado de “igualitário”, sendo o preferido das pessoas razoáveis. Com essa formulação, Rawls acredita dar um passo a mais no sentido do aperfeiçoamento do liberalismo.
Como sabemos, segundo a tradição britânica, com John Locke (1632-1704), o liberalismo nasceu preocupado em garantir a liberdade individual, a tolerância e, é claro, a propriedade privada.
Havia alguma intenção para com a igualdade, mas não em uma relação harmônica com a liberdade. Filósofos americanos como John Dewey (1859-1956), cujos escritos serviram de base para o New Deal, deram nova coloração ao liberalismo. Alertaram para a necessidade de afastar essa doutrina do exagerado cultivo do “individualismo”, calcado em uma exacerbada tendência de valorizar a proteção da propriedade privada e de promover a liberdade de escolha dos indivíduos, não raro em detrimento de objetivos coletivos necessários ao progresso social. Todavia, se a geração de Dewey forneceu ao liberalismo os ideais que puderam fazer os Estados Unidos se aproximar das preocupações da social democracia europeia, isso não gerou nenhuma nova teoria política normativa. Quando John Rawls trouxe à luz a sua teoria da “justiça como equidade”, não foram poucos os que aplaudiram a iniciativa, e rapidamente ela se tornou o ponto de referência dos debates americanos (e em boa parte dos países de língua inglesa) sobre filosofia política, especialmente a partir dos anos setenta.
Vinte e cinco séculos após Platão, Rawls deu à filosofia política uma teoria da cidade justa que não visa simplesmente o funcionamento social e, sim, o não bloqueio das potencialidades individuais de seus habitantes. Quatro séculos após Locke, Rawls procurou fazer com que o desenvolvimento das potencialidades individuais dos habitantes da cidade justa tenha chance de se harmonizar com a necessária melhoria da sociedade em seu conjunto, talvez a única forma de garantir que potencialidades individuais venham realmente a dar frutos ou, os melhores frutos.